O tráfico de animais selvagens: uma ameaça global à biodiversidade e à saúde

Uma breve atualização sobre a situação do tráfico de animais selvagens no Brasil e no mundo e como devemos refletir melhor sobre a comercialização da fauna e de seus produtos

Isabella Fontana

4/10/20248 min read

O tráfico de animais selvagens ainda é a terceira maior atividade ilícita do mundo

Quando iniciei o curso de graduação em medicina veterinária, na Universidade de Brasília, em 2002, já se dizia que o tráfico de animais silvestres era a terceira maior atividade ilegal do mundo, perdendo apenas para o tráfico de drogas e de armas, respectivamente.

Lembro do primeiro contato com a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), que mostrava aos alunos as condições deploráveis às quais os animais eram submetidos desde a captura até a comercialização. Isso me motivou inclusive a atuar como voluntária no Zoológico de Brasília, onde semanalmente dezenas de animais era recebidos de apreensões para atendimento emergencial no hospital veterinário e encaminhamento aos Cetas para triagem e destinação, sendo a maioria aves.

Passados mais de 20 anos, parece que pouca coisa mudou... Todos os anos, milhões de animais continuando sendo retirados ilegalmente da natureza, movimentando entre 20 e 23 bilhões de dólares e colocando em risco a biodiversidade, a saúde e o equilíbrio dos ecossistemas.

As principais rotas e demandas do crime

As principais origens dos animais traficados são países com maior biodiversidade e menor aplicação das leis, como os da América Latina, África, sudeste da Ásia e pequenas ilhas do Pacífico. O Brasil, por ser o país mais biodiverso do mundo, está nas principais rotas de tráfico, sendo a Amazônia o epicentro. Os maiores destinos são a Europa e a América do Norte, que visam aos mercados de aves, primatas e répteis para criação como animais de estimação ou ornamentação.

Já partes de animais africanos, como o marfim de elefantes, chifres de rinocerontes, pele, ossos e dentes de leões e outros felinos e carne e escamas de pangolins, têm os países da Ásia, principalmente a China e a Rússia, como os maiores consumidores pela grande demanda da medicina tradicional, culinária exótica e indústria da moda. Animais asiáticos, como tigres, orangotangos, gibões e tartarugas marinhas, também são explorados em todos esses mercados.

A imagem a seguir mostra as principais rotas de tráfico do mamífero mais ilegalmente caçado do mundo, o pangolin africano. Estima-se que apenas entre 2014 e 2018 mais de 370.000 indivíduos tenham sido mortos  e que pelo menos 50.000 sejam abatidos todos os anos. Carregamento com 25 toneladas de escamas já foram apreendidas (Fonte: World WISE Database).

Nos anos 90, por exemplo, se tornou muito popular o uso de peles de tigre e leopardo em festivais asiáticos tradicionais para demonstração de riqueza e poder devido ao alto valor agregado, o que praticamente levou esses animais à beira da extinção na região do Tibete. Isso fez com que o líder espiritual Dalai Lama, exilado na Índia desde 1959, repudiasse tal hábito e convocasse mais de 10.000 tibetanos a queimar suas peças de pele de animais em uma grande pilha de fogo, resgatando os princípios budistas de amor à vida e respeito aos animais. Eventos como esse se repetiram, se tornando um dos símbolos de ativismo ambiental e resistência das congregações budistas à dominação chinesa. Maiores detalhes estão na página oficial do Dalai Lama.

Esse relato mostra como a moda não se limita às passarelas do mundo moderno, mas também influencia comunidades de grupos étnicos em zonas remotas com economia basicamente agrária. A industrialização certamente acelerou certos processos, tornando os impactos ainda mais avassaladores pelo consumo insustentável.

Os orangotangos de Bornéu também se tornaram emblemáticos pelo tráfico de filhotes para criação como pets após a eliminação dos adultos, considerados pragas nas plantações de dendezeiros, que praticamente devastaram as florestas da ilha.

A situação atual do tráfico de animais no Brasil

Só no Brasil, estima-se que pelo menos 38 milhões de indivíduos sejam vítimas do tráfico e que aproximadamente 2 bilhões de dólares girem em torno do comércio ilegal anualmente. De acordo com a Renctas, 70% do tráfico é destinado ao mercado interno, sendo a região Sudeste a principal consumidora.

Um levantamento da ONG Freeland aponta, com base em notícias, que mais de 140 mil animais foram apreendidos no Brasil entre 2018 e 2022, além de quase 900 ovos. Esses números mostram o quanto a fiscalização é pouco eficiente em relação às estimativas de comércio ilegal.

O grupo taxonômico mais visado é o das aves, destacando-se os passeriformes, como canários-da-terra, curiós, azulões, trinca-ferros e coleirinhos, que são apreciados por colecionadores pelo canto e beleza. Em seguida, estão os psitacídeos, que incluem as araras, papagaios e periquitos, muito procurados no comércio de animais de companhia pela inteligência e comportamento dócil.

Vários répteis, como jiboias e jabutis, são também vendidos como animais de companhia e ornamentação, sendo que alguns cágados, como a tartaruga-da-Amazônia são alvo de caça pela sua carne e têm seus ovos ilegalmente comercializados para consumo direto. Algumas serpentes são visadas para a extração de veneno e produção de soro antiofídico, além de usos em rituais religiosos.

No grupo dos mamíferos, os primatas, como mico-leão-dourado, macaco-prego e sagui, e felinos, como jaguatirica, gato-do-mato, onça-pintada, são destinados, principalmente, ao mercado pet, sendo as peles de felinos também comercializadas no exterior. Em algumas culturas tradicionais, acredita-se que algumas partes de animais, como boto-cor-de-rosa, podem trazer sorte, prosperidade ou afastar mau augúrio por serem consideradas criaturas míticas ou dotadas de poderes sobrenaturais fundamentados em lendas do folclore local.

Peixes ornamentais e uma grande variedade de insetos e outros invertebrados, como moluscos bivalves e gastrópodes, também são alvo de colecionadores e aquaristas no Brasil e em outros países.

Repercussões para a saúde pública

Os animais traficados são mantidos e transportados geralmente em condições tão precárias, que acabam levando a maioria à morte. As consequências são desastrosas não apenas para a biodiversidade e para o bem-estar animal, mas também para a saúde pública, visto que o contato entre pessoas e animais selvagens, sem os devidos cuidados, aumenta as chances de transmissão de zoonoses e de disseminação de doenças emergentes.

A baixa higiene e aglomerações por longos períodos sem alimentação adequada levam a altíssimos níveis de estresse, que comprometem o sistema imunológico e favorecem infecções, principalmente virais, bacterianas e fúngicas. Além disso, a ausência de procedimentos de biossegurança faz com que essas infecções sejam facilmente transmitidas aos humanos especialmente quando há manipulação e consumo de carnes, tendo em vista a potencial contaminação da matéria-prima e do ambiente de abate.

Por esse motivo, os mercados úmidos são considerados locais altamente propícios para o surgimento de doenças emergentes. Nesses locais, geralmente, animais vivos doentes e sadios são mantidos nos mesmos locais que carnes e outros alimentos sem qualquer atenção a critérios de inspeção sanitária, representando risco à saúde dos trabalhadores e consumidores.

Após a emergência da COVID-19 e considerando o histórico de surgimento e disseminação de febre Lassa, Monkeypox, Marburg, Nipah, SARS e MERS, a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA) definiu como uma de suas metas a sensibilização dos governos dos países-membros para ações de fechamento progressivo de mercados úmidos, de forma a buscar um equilíbrio entre as demandas socioculturais de cada populações e os critérios básicos de saúde animal, humana e ambiental por meio do desenvolvimento sustentável e comércio regular e responsável de produtos da fauna.

Desafios

Dentre os principais desafios para o combate ao tráfico de animais selvagens, estão a falta de recursos, a corrupção e a baixa conscientização da população consumidora. Além disso, muitos dos traficantes vivem em situação de miséria e em locais onde há grande dificuldade de fiscalização, o que faz com que a criminalidade se perpetue e muitas vezes por necessidade.

É preciso criar alternativas que estimulem os criminosos a abandonarem as condutas ilícitas, e o que a experiência de vários países mostra é que essa mudança de consciência não ocorre apenas por meio de sanções administrativas ou penais, mas, principalmente, pela oportunidade de trabalho com salários dignos para o sustento de suas famílias. Em outras palavras, há necessidade de estímulo econômico, além de multas, apreensões e detenções.

Isso mostra que o desenvolvimento sustentável é a estratégia mais eficiente para a conservação do meio ambiente. Dessa forma, o setor ambiental pode com suas próprias pernas empregar pessoas dispostas a defender interesses conservacionistas sem que fiquem à mercê de recursos limitados e de doações, que podem ser interrompidas a qualquer momento.

Precisamos discutir melhor sobre o comércio de espécies silvestres e seus produtos

Foi a partir do contexto econômico que surgiram as discussões sobre a regulamentação do uso sustentável da fauna. Parte dos ambientalistas acredita que o comércio de animais selvagens, incluindo subprodutos, deva ser totalmente proibido como forma de proteção dos recursos naturais. Entretanto, essa abordagem não apresenta formas viáveis de custeio de ações continuadas de fiscalização que garantam essa proteção, visto que, sem a geração de receitas a partir de impostos, os recursos de outras áreas da economia precisariam ser desviados para o aporte necessário. Ou seja, é um sistema que não se sustenta.

Uma outra parte defende a ideia de que a geração de renda a partir de alternativas economicamente interessantes são capazes de mobilizar recursos e mão-de-obra qualificada justamente para a produção e o comércio responsável, além das ações de fiscalização e educação ambiental, combatendo também a fome e a pobreza pela ampliação de oportunidades de trabalho em empregos formais.

De fato, ao longo de anos de restrições, onde as demandas persistem, o tráfico não recua significativamente, pressionando várias espécies ao risco de extinção. Isso mostra que a simples proibição não é a solução e que a regulamentação é a opção que mais se aproxima de um sistema sustentável. Na África, por exemplo, é comum que traficantes de animais abandonem a vida de criminalidade para atuarem como guardas ou guias em parques privados mantidos com recursos do ecoturismo. O documentário "Trophy" (2017) mostrou também como a criação comercial de rinocerontes para corte e venda regulamentada dos chifres ajudou a manter e valorizar esses animais vivos, considerando que no cenário do tráfico os animais são mortos pelos caçadores ilegais.

A própria OMSA reconhece em suas diretrizes internacionais para a saúde de animais selvagens que o comércio legal de fauna deve ser fortalecido com base nos princípios de saúde e sustentabilidade, da mesma maneira que atividade ilegais e prejudiciais à saúde animal, humana ou ambiental devem ser combatidas, por serem estas as verdadeiras causas dos riscos de ocorrência de doenças emergentes.

O posicionamento da OMSA sobre o comércio de animais selvagens está descrito no documento “Wildlife Trade and Emerging Zoonotic Diseases”, elaborado pelo grupos de trabalho, em 2020, destacando que crises sanitárias ocorrem justamente onde a regulamentação sobre o uso de fauna é pobre.

É fundamental que as pessoas compreendam a gravidade do comércio ilegal de animais selvagens e de seus produtos de forma que possam visualizar que, ao adquiri-los, estão contribuindo para a exploração e o sofrimento desses animais, além de alimentar o tráfico e expor sua própria saúde a risco.

Da mesma maneira, é importante que a sociedade reconheça a existência de demandas de acordo com as características socioculturais da população para que normas que visem o uso sustentável e responsável da fauna possam ser reivindicadas, rechaçando-se obviamente condutas de maus-tratos ou predatórias, para que vias legais suprimam práticas insustentáveis, de forma que sociedade, economia e meio ambiente sejam favorecidos.

Nesse sentido, a aquisição de animais ou produtos legalizados, observando-se critérios de adaptabilidade à criação comercial, de segurança, de saúde e bem-estar, pode sim ser uma excelente forma de combater o tráfico de animais selvagens e a proteção da biodiversidade.

Imagem: Isabella Fontana (2006)

Principais rotas do tráfico de pangolins africanos. Fonte: World WISE Database.