Malacocultura: sustentabilidade e caminhos para o consumo seguro
Apesar da sustentabilidade social, econômica e ambiental da produção de moluscos bivalves, seus produtos podem representar altos riscos para a saúde pública. Compreender esses riscos é essencial para mitigá-los e para exigir condições cada vez mais favoráveis ao desenvolvimento do setor


Os moluscos bivalves são organismos aquáticos filtradores que possuem o corpo revestido por uma concha composta por duas valvas. Os grupos taxonômicos mais conhecidos incluem as ostras, os mexilhões, as vieiras e as amêijoas, estas últimas também conhecidas como moluscos de areia, dependendo da região, e compreendem os berbigões, lambretas, sernambis etc.
Apesar de muitos maricultores chamarem os mexilhões de “marisco”, esse termo, na verdade, significa “fruto do mar” e está relacionado a várias espécies de moluscos e crustáceos ou todo o tipo de vida marinha que pode ser coletada com as mãos e é utilizada na alimentação.
Com sabor suave, os moluscos bivalves são um tipo de pescado altamente apreciado na gastronomia internacional, marcada, principalmente, pela culinária do Mar Mediterrâneo, que é um dos mares mais pescados do mundo, e pela cultura asiática, que possui intensa presença de alimentos oriundo do mar. Espanha, França, Itália, China, Japão e Coreia do Sul são exemplos de grandes produtores e consumidores de diversas espécies. Nas Américas, destacam-se o Chile, o Peru, algumas partes dos Estados Unidos e litorais do Nordeste e de Santa Catarina no Brasil.
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Aquicultura sustentável
A malacocultura, como é chamada a criação de moluscos bivalves, é considerada uma das cadeias produtivas mais sustentáveis do mundo. Isso porque os insumos utilizados são limitados à fase de larvicultura, quando esta é feita em ambiente laboratorial. Por consumirem apenas fitoplâncton, que nada mais são que algas microscópicas, o alimento dos moluscos bivalves deve ser igualmente criado em laboratório e gotejado nos tanques de criação para a nutrição e desenvolvimento das larvas até a fase de pós-larva, também chamada de semente por apresentar uma pequena concha visível.
A complexidade das instalações depende do tamanho da produção, sendo que a maior demanda de espaço está relacionada justamente à criação de fitoplâncton para a alimentação dos moluscos bivalves. Os sistemas envolvem a captação de água do ambiente natural, remoção de espuma, filtragem para retirada de areia, lama ou lodo, tratamento para a eliminação de patógenos, circulação, controle de temperatura e emissão segura após nova desinfecção. Outros insumos incluem a utilização de substâncias indutoras de desova e substratos necessários para a fixação e metamorfose das formas jovens, que são geralmente o pó das conchas de animais adultos. Dessa forma, verifica-se inclusive o aproveitamento de material que seria descartado como resíduo.
Existe também a possibilidade de se obter formas jovens do ambiente natural, dispensando-se a produção de sementes em laboratório. Essa opção requer licenciamento ambiental, envolve menores custos operacionais e restringe-se obviamente às espécies nativas, promovendo a valorização da biodiversidade local. Além disso, outro fator que contribui para a sustentabilidade da produção é a ausência de necessidade de insumos para a fase de crescimento e engorda, em sistemas abertos e semiabertos, que é feita no ambiente natural. Nessa etapa, os moluscos bivalves praticamente filtram a água do mar, lago ou lagoa e ganham peso sem uso de qualquer aditivo ou ração. Portanto, além de prestarem um serviço ecossistêmico, removendo excessos de matéria-orgânica da água, não há formação de resíduos nem a eliminação de poluentes.
Por serem produtos valorizados no mercado alimentício, a renda gerada é uma forma de promover desenvolvimento a comunidades litorâneas e ribeirinhas, valorizando-se a biodiversidade e a cultura local com baixo impacto ambiental. Conchas e pérolas também são possíveis produtos da malacocultura, podendo integrar mercados de decoração, artesanato e moda com maior valor agregado.
Dessa forma, verifica-se a harmonia entre fatores sociais, econômicos e ambientais, que representam o tripé da sustentabilidade.
É importante destacar que a malacocultura precisa respeitar a delimitação de áreas aquícolas, definidas com base em normas sanitárias e ambientais, não se sobrepondo a áreas de lazer ou definidas para outras finalidades. Críticas podem ocorrem em áreas habitacionais ou turísticas devido a prejuízos estéticos, já que os cultivos são feitos em estruturas flutuantes. Por isso, o cumprimento das normas é essencial para proteger as unidades produtivas de eventuais acusações de ilegalidade ou riscos para a saúde e meio ambiente.
Bioindicadores de qualidade ambiental
Por serem animais filtradores, os moluscos bivalves acabam incorporando ao seu organismo outras substâncias além dos nutrientes provenientes da ingestão de microalgas. Nesse processo, ocorre a concentração de microrganismos e elementos que indicam como estão as condições ambientais da região.
São criaturas de baixo metabolismo, longevas e que forma populações de alta densidade. Por isso, sua utilização em investigações de contaminação ou simples caracterização de componentes bióticos ou abióticos pode trazer informações importantes sobre o histórico e condições de uma região. Essas informações vão além dos corpos d’água, tendo em vista o escoamento de resíduos do ambiente terrestre pelas chuvas.
Preocupação para a saúde pública
A filtração da água pelos moluscos bivalves também permite que ocorra a concentração de patógenos e contaminantes prejudiciais à saúde dos consumidores nas partes comestíveis. Geralmente, a contaminação não é perceptível, pois não altera a cor, o odor nem o sabor dos produtos finais. Muitos dos contaminantes sequer são inativados pelo cozimento, como algumas toxinas produzidas por microalgas nocivas (ficotoxinas), o que torna as garantias de inocuidade bastante desafiadoras.
Nesse sentido, fica evidente que a malacocultura de sucesso é totalmente depende da qualidade da água no local de cultivo. A produção de moluscos bivalves, portanto, é (ou deveria ser) um importante setor para impulsionar ações de saneamento básico, já que a contaminação da água pode inviabilizar a comercialização dos produtos devido às repercussões na saúde pública por casos de intoxicação alimentar.
Vigilância de contaminantes e legislação
Foi nesse contexto que, em 2008, a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), em parceria com outras instituições locais, como o Instituto Federal Santa Catarina (IFSC), iniciou o monitoramento de microalgas nocivas, microrganismos patogênicos e ficotoxinas para direcionar as atividades de despesca e processamento industrial visando à segurança da população local, que é historicamente grande consumidora de moluscos bivalves.
Em 2012, o então Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) instituiu o Programa Nacional de Controle Higiênico-Sanitário de Moluscos Bivalves (PNCMB), transferindo a responsabilidade pelo monitoramento e determinando as ações de fiscalização, em Santa Catarina, para a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc). A Instrução Normativa Interministerial MPA/MAPA nº 07, de 08 de maio de 2012, juntamente com as Portarias MPA n° 204, de 28 de junho de 2012, e n° 175, de 15 de maio de 2013 e Portaria SDA/MAPA nº 48, de 24 de maio de 2016, estabeleceram a obrigatoriedade de cadastramento dos estabelecimentos de aquicultura, a rotina de amostragem para a vigilância oficial de contaminantes nas áreas aquícolas, os critérios mínimos de inocuidade para a suspensão de despesca ou tratamento prévio à liberação para o mercado consumidor, bem como todos os requisitos necessários aos estabelecimentos industriais para o processamento de moluscos bivalves em âmbito nacional.
Com a extinção do MPA, em 2015, a gestão do PNCMB passou a ser de competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). A partir desse momento, uma série de mudanças, principalmente, das análises laboratoriais ocorreram para adequação da antiga Rede Nacional de Laboratórios de Aquicultura (RENAQUA) ao modelo dos Laboratórios Federais de Defesa Agropecuária (LFDA).
Na época da criação do PNCMB, foram utilizados como referência as orientações disponíveis no Codex Alimentarius e outras fontes de organizações internacionais, além de parâmetros utilizados na Europa e métodos validados para o diagnóstico laboratorial. Entretanto, por ser uma área mais recente da saúde pública e da inspeção de alimentos, muitas descobertas e mudanças ocorreram posteriormente, inclusive nas diretrizes de outros países, levando à necessidade de revisão e modernização do programa, no Brasil, para proteção dos consumidores e melhor operacionalização das atividades a campo.
As dificuldades de adequação às normas pelos maricultores de Santa Catarina eram evidentes devido às condições altamente dinâmicas das contaminações, limitações dos serviços de saneamento básico, intempestividade da liberação de resultados laboratoriais e parâmetros que poderiam estar excessivamente restritivos, em relação às atualizações internacionais. Para se ter uma ideia, houve momentos em que a maior parte do esgoto do estado era lançado diretamente no mar sem qualquer tipo de tratamento, o que fatalmente se refletia nas análises e de fato representava riscos sanitários. Pior que Santa Catarina estariam, então, os outros estados, que sequer haviam um programa semelhante implementado.
Diante dessas circunstâncias, deu-se início ao processo de revisão da legislação, em 2018, para dar espaço à criação do Programa Moluscos Bivalves Seguros (MoluBiS), que consolidou novos critérios e incluiu a possibilidade de classificação de áreas de acordo com diferentes níveis de contaminação na carne dos moluscos bivalves, tendo-se como referência metodologias utilizadas na Europa e nos Estados Unidos. Foi considerada também a incorporação de contaminantes emergentes.
O Programa MoluBiS foi publicado conforme Portaria SDA/MAPA nº 884, de 6 de setembro de 2023, e manteve-se sob a gestão do MAPA, mesmo após recriação do MPA no início de 2023. Dessa forma, as quatro normas anteriores foram revogadas. A Portaria contempla os controles nas etapas de produção, trânsito e processamento, incluindo embalagem, rotulagem e expedição, deixando claro, no art. 84, que as embalagens devem ser invioláveis até a comercialização para o consumidor final. Nesse sentido, fica subentendida a proibição da venda à granel de moluscos bivalves vivos, o que ainda é comum em feiras e peixarias em todo o Brasil.
Riscos da ingestão de moluscos bivalves
Microrganismos patogênicos
Os principais microrganismos patogênicos envolvidos em casos de intoxicação alimentar por consumo de moluscos bivalves são os coliformes, com destaque para a Escherichia coli e para a Salmonella spp., que são basicamente oriundos de contaminação fecal. Os sintomas, geralmente, são vômito, diarreia (que pode se tornar sanguinolenta), febre, dor de cabeça, dores do corpo, cólicas abdominais e erupções na pele.
O período de incubação da E. coli varia de 3 a 8 dias. A maioria dos casos se manifesta em até 4 dias após a infecção, sendo que a pessoa infectada pode transmitir o agente por até 15 dias por contado direto, manipulação de alimentos ou compartilhamento de talheres, copos e até banheiros. Algumas subespécies de E. coli são capazes de produzir toxinas altamente lesivas ao sistema urinário, causando uma síndrome urêmica e hemolítica, que pode levar à morte ou deixar sequelas que comprometem o funcionamento dos rins. Em casos mais raros, podem ocorrer complicações neurológicas, como convulsão, choque e coma. Apesar de todos os riscos possíveis, a maioria das pessoas acometidas se recupera num período de 10 dias, lembrando que o uso de antibióticos deve ser evitado, pois pode aumentar as chances de ocorrência da síndrome urêmica e hemolítica (OMS, 2018).
A Salmonella spp. possui um período de incubação mais rápido, que pode variar de 6 a 72 horas. A maioria dos casos se manifesta de forma aguda entre 12 a 36 horas após a infecção. Os sinais de intoxicação duram de 2 a 7 dias e são mais preocupantes em crianças e idosos, que podem apresentar desidratação severa. Da mesma maneira que nos casos de infecção de E. coli, o uso de antibióticos deve ser evitado nos casos leves e moderados, pois isso pode induzir a ocorrência a resistências a antimicrobianos, que é uma preocupação crescente em todo o mundo.
Felizmente, esses microrganismos são destruídos pelo cozimento. Entretanto, é importante destacar que a E. coli é uma das principais bactérias do grupo dos coliformes termotolerantes (ou coliformes fecais), por isso, apenas o cozimento que garanta a temperatura acima de 70°C em todas as partes comestíveis assegura sua eliminação.
O maior risco no consumo de moluscos bivalves, no entanto, está na ingestão de animais vivos ou crus. Nesse sentido, apenas as análises laboratoriais dos contaminantes podem dar segurança. Segundo o Codex Alimentarius, a E. coli é o principal indicador de contaminação de origem fecal, por isso, o Programa MoluBiS utiliza esta bactéria como referência para a classificação de áreas quanto aos níveis de contaminação por microrganismos patogênicos, não determinando, por exemplo, análises de Salmonella spp. nessa etapa. O vírus causador da Hepatite A também está relacionado à contaminação fecal e é, igualmente, um importante risco na ingestão de moluscos bivalves.
Outros microrganismos de preocupação crescente são o Vibrio parahemolyticus e o Vibrio vulnificus, também responsáveis por quadros de gastrenterite humana, sendo este último mais restrito a ambiente marinhos e estuarinos. A Listeria monocytogenes é comumente associada a intoxicações alimentares que envolvam alimentos refrigerados e que serão ingeridos crus, por isso, a análise desse microrganismo é relevante após as etapas de processamento.
Ficotoxinas
As ficotoxinas são biotoxinas produzidas por algas microscópicas nocivas. Como os moluscos bivalves se alimentam basicamente de microalgas, no processo de filtração, as toxinas, se presentes, acabam por se concentrar nos tecidos comestíveis, representando um risco aos consumidores.
É importante lembrar que a maioria das espécies de fitoplâncton não é nociva e que os organismos marinhos vivem em constantes ajustes de acordo com mudanças de luminosidade, temperatura e matéria orgânica em decomposição. Por isso, alterações ambientais, sejam elas naturais ou causadas pelo homem, se refletem em desequilíbrios que podem ocasionar florações, ou seja, a proliferação descontrolada de microalgas, popularmente conhecidas como marés vermelhas.
A única maneira de se certificar que uma floração de algas é tóxica é por meio das análises laboratoriais de amostras de água e de tecido animal, sendo os organismos filtradores os melhores indicadores. Além disso, é comum encontrar animais mortos, sendo que em alguns casos pode-se verificar mortalidades em massa, indicando uma possível depleção no oxigênio dissolvido ou a presença de altos níveis de ficotoxinas na água.
Da mesma maneira que nem toda floração é tóxica, nem toda situação de equilíbrio biológico aparente está livre da presença de toxinas. Por isso, as análises de amostras para a detecção de ficotoxinas nos tecidos comestíveis dos moluscos bivalves deve ser constante para proteção da saúde pública.
Os principais grupos de ficotoxinas causadoras de síndrome de intoxicação por consumo de moluscos bivalves são:
a) Toxinas diarreicas (“Diarrhetic Shellfish Poisoning” - DSP): ácido ocadáico (AO) e seus análogos (incluindo as dinofisistoxinas - DTX) e os azaspirácidos (AZA), produzidas pelas microalgas do gênero Dinophysis e Prorocentrum. São responsáveis por causar quadros agudos de diarreia, náusea, vômitos e dores abdominais, que podem se iniciar poucas horas após o consumo dos moluscos bivalves, levando à desidratação severa;
b) Toxinas amnésicas (“Amnesic Shellfish Poisoning” - ASP): ácido domóico (DA), produzido por microalgas classificadas como diatomáceas do gênero Pseudonitzschia. Os sintomas incluem vômito, diarreia, cólica abdominal e perda da memória de curto prazo, que pode se tornar permanente;
c) Toxinas paralisantes (“Paralytic Shellfish Poisoning” - PSP): saxitoxinas (STX) e seus derivados, produzidos por microalgas dos gêneros Alexandrium, Gymnodinium e Pyrodinium. Essas toxinas bloqueiam os canais de sódio dos neurônios, impedindo a condução do impulso nervoso. Os sintomas surgem logo após o consumo de moluscos bivalves contaminados e incluem dormência ou formigamento dos lábios, incoordenação motora e dificuldade respiratórias, podendo haver paralisia do diafragma e, consequentemente, dos movimentos respiratórios, o que é fatal caso não haja atendimento médico imediato;
d) Toxinas neurotóxicas (“Neurotoxic Shellfish Poisoning” - NSP): brevetoxinas (BTX), produzidas pelo dinoflagelado Karenia brevis. Os sintomas incluem náuseas, vômitos, diarreia, sensação de formigamento ou dormência na pele, cãibras, broncoconstrição, paralisia, convulsões e coma. Até o momento, não há relatos de detecção de BTX no Brasil. Por esse motivo, esse grupo de ficotoxinas não integra a vigilância atual nas amostras de tecido. De qualquer forma, o monitoramento de fitoplâncton inclui a identificação de Karenia brevis para alerta de microalgas nocivas emergentes na costa brasileira.
Outras ficotoxinas são conhecidas por serem altamente tóxicas em camundongos inoculados em laboratório, como as iminas cíclicas (CI), pectenotoxinas (PTX) e yessotoxinas (YTX). Entretanto, por nunca terem sido descritas em casos de intoxicação em humanos, deixaram de ser investigadas em programas de monitoramento de moluscos bivalves conduzidos no passado. Já os grupos das palitoxinas (P1TX) e das ciguatoxinas (CTX) foram descritos mais recentemente e estão associados a sintomas neurológicos e gastrintestinais em humanos, como gosto metálico na boca, náusea, vômito, diarreia, letargia, espasmos musculares, mialgia e dispneia, podendo causar morte por lesão do miocárdio em casos raros.
Justamente pela concentração variável em frutos do mar, a legislação nacional segue parâmetros internacionais que definiram limites máximos de segurança específicos para moluscos bivalves marinhos, sendo eles:
I - 0,8 mg/kg (2HCL) de equivalente de saxitoxina (eq-STX.2HCL);
II - 0,16 mg/kg de equivalente ao ácido ocadáico (eq-AO);
III - 20 mg/kg de ácido domóico (AD); e
IV - 0,16 mg/kg de equivalente aos azaspirácidos (eq-AZP).
Para moluscos bivalves de água doce, produção ainda insipiente no Brasil, apenas os níveis de saxitoxina na carne são considerados, além do monitoramento de cianobactérias e cianotoxinas na água de cultivo conforme padrões de potabilidade para água de consumo. De acordo com a Portaria GM/MS nº 888, de 4 de maio de 2021, quando a contagem de células de cianobactérias exceder 20.000 células/mL, deve-se realizar análise das cianotoxinas microcistinas, saxitoxinas e cilindrospermopsinas.
Hidrocarbonetos policíclicos aromáticos
A preocupação com os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPA) está principalmente relacionada ao fato desses compostos serem cancerígenos. Por serem derivados da queima incompleta de matéria orgânica ou de derivados do petróleo, são encontrados em emissões de resíduos industriais que envolvam a combustão, queimadas e até no processo de defumação de alimentos.
Da mesma maneira que para as ficotoxinas, existem limites máximos internacionalmente definidos especificamente para moluscos bivalves visando à proteção da saúde pública. Esses limites foram definidos considerando o consumo médio dos produtos nos países da União Europeia. Como o consumo no Brasil é pouco estudado e, provavelmente, bastante variável nas diferentes regiões, os valores europeus foram utilizados como referência para moluscos bivalves na etapa de cultivo ou extração em todo o território nacional, sendo eles:
I - 5 μg/kg de benzo(a)pireno; e
II - 30 μg/kg da soma de benzo(a)pireno, benzo(a)antraceno, benzo(b)fluoranteno e criseno.
Metais
Os metais também são importantes contaminantes que se acumulam nos tecidos de organismos aquáticos, principalmente os filtradores. Geralmente, a contaminação é irreversível, ou seja, nem mesmo o processo de depuração natural ou em estabelecimento industrial é capaz de eliminar esse tipo de contaminante dos moluscos bivalves, fazendo com que os produtos sejam destinados à destruição. Nos casos de contaminação intensa, os moluscos bivalves podem até mesmo morrer devido ao rompimento de brânquias.
A intoxicação por metais em humanos pode causar sinais gastrintestinais crônicos, como náuseas, vômitos, salivação, diarreia e cólicas abdominais. Em alguns casos, podem causar também alterações respiratórias e neurológicas, principalmente, quando envolvem índices elevados de chumbo e mercúrio.
Os limites máximos permitidos em amostras de moluscos bivalves de cultivo ou extração para alimentação foram definidos para três indicadores, sendo eles o cádmio, o chumbo e o mercúrio, frequentemente encontrados em maiores níveis no pescado. Os valores foram estabelecidos pela ANVISA por meio da RDC Nº 42, de 29 de agosto de 2013, que tem como referência o regulamento técnico do MERCOSUL sobre limites máximos de contaminantes inorgânicos em alimentos, sendo eles:
Cádmio - 2,00 mg/kg
Chumbo - 1,50 mg/kg
Mercúrio - 0,50 mg/kg
O Programa MoluBiS não determinou a obrigatoriedade das análises de arsênio em moluscos bivalves nas áreas de cultivo ou extrativismo, tendo em vista que esse elemento é encontrado em altos valores em várias partes do mundo sem relação com impactos negativos na saúde pública. Os próprios regulamentos da União Europeia desconsideram esse critério para proteção dos consumidores. Nesse sentido, espera-se que os regulamentos do MERCOSUL sejam revistos e atualizados junto aos órgãos de vigilância sanitária dos países membros.
Microplástico e outros contaminantes emergentes
A dinâmica de contaminação do meio ambiente varia de acordo com mudanças climáticas, fenômenos naturais, avanços tecnológicos e uso dos recursos pela população humana. Novas tecnologias podem influenciar tanto positivamente quanto negativamente o ambiente.
O plástico foi revolucionário para o desenvolvimento humano e hoje faz parte do cotidiano em todo o mundo por ser leve, impermeável, higiênico e durável, sendo amplamente utilizado no setor de embalagens dos mais variados produtos. Entretanto, justamente a alta durabilidade associada à presença de elementos prejudiciais à saúde, se ingeridos, fazem com que esse material se acumule e tenha efeitos deletérios no meio ambiente. No seu longo processo de decomposição, ocorre a fragmentação em pequenas partículas, que podem ser facilmente ingeridas por animais.
Por esse motivo, o microplástico passou a ser uma preocupação dos órgãos internacionais, como a Organização Mundial para a Alimentação (FAO), que alertam para a presença desses resíduos sólidos no pescado como um risco para a saúde da vida marinha e dos seus consumidores. Sendo assim, é essencial que novas tecnologias prevejam também seus impactos, além dos benefícios, e viabilidades na gestão de resíduos para um futuro sustentável.
Perspectivas futuras
A grande questão dos riscos do consumo de moluscos bivalves é que a fiscalização na etapa de comercialização não está integrada à fiscalização na etapa de produção. É justamente na etapa de comercialização que ocorrem várias irregularidades, como a mistura com animais de origem irregular e venda à granel, ou seja, sem qualquer tipo de embalagem e rotulagem que garantam rastreabilidade.
Dessa forma, para o real sucesso do Programa MoluBiS, é essencial que as ações de fiscalização pelos órgãos de vigilância sanitárias nas unidades federativas sejam rotineiras e alinhadas aos serviços de saúde animal e de inspeção de produtos de origem animal, reforçando a abordagem de saúde única. Caso contrário, todos os esforços nos controles desde a etapa de produção se tornam em vão e fatalmente produtos irregulares continuarão comprometendo a saúde dos consumidores, o que se repercute de forma negativa para toda a cadeia produtiva. Além disso, o saneamento básico precisa ser consolidado como umas das prioridades dos serviços de saúde no Brasil. Onde perdurarem emissões de esgoto sem tratamento, é impossível estabelecer atividades de aquicultura seguras.
A conscientização da população é também um elemento chave nesse processo para o consumo seguro, tendo em vista que consumidores esclarecidos possuem maior capacidade de exigir dos estabelecimentos ou comerciantes o cumprimento de normas e garantias dos padrões mínimos de higiene, inocuidade e qualidade de alimentos. Com mercados cada vez mais exigentes, é possível alcançar altos níveis de qualidade, inclusive prevendo-se a ampliação de exportações, revertendo-se, assim, a imagem estigmatizada dos moluscos bivalves como alimentos prejudiciais à saúde.


